quarta-feira, 5 de março de 2014

Profundamente Minha: Capítulo 23 — A verdade nua e crua

ATENÇÃO: RELEIAM O CAPÍTULO ANTERIOR, POIS ACRESCENTEI ALGUMAS COISAS NELE, DE FORMA QUE O FINAL TERMINOU COM UMA CENA QUE CONTINUA JÁ NO COMEÇO DESSE. 
E chegamos ao último capítulo! Meu Deus, parece que passei a vida inteira escrevendo essa fic! Obrigada por todo o carinho até aqui, cada elogio, cada palavra de apoio, incentivo. Eu amei tudo. Esse foi, com certeza, um dos capítulos mais emocionantes que já escrevi até aqui. Espero que gostem. Boa leitura.


“Por isso ele a amava, porque você só pode amar alguém que é um eco de si mesmo em seu momento de profundo pesar”.
— Orson Scott Card
Narrador
Gideon estava nervoso, apesar de não demonstrar. A confiança era seu escudo. Seu corpo estava rijo, tamanha a tensão que sentia. Ele sabia que aquela conversa não seria fácil para nenhum dos dois, mas era necessária. Não tinha como nem porque continuar a esconder aquilo. Eva era sua alma gêmea, sua metade, seu eco, seu tudo. Ela, mais do que ninguém, compreenderia os momentos terríveis pelos quais passara. Ninguém além dela sabia o que era viver com uma mancha como aquela, lhe perseguindo em todas as áreas de sua vida, nos seus sonhos.
A união dos dois estava sempre sendo abalada por algo relacionado ao passado de cada um. Gideon sabia qual era o problema da parte de Eva e tratou de resolvê-lo da maneira que achou mais eficiente. Um homem como ele sabe mais do que ninguém que, para se derrotar um adversário, é preciso conhecê-lo. Não se pode lutar contra algo invisível. É uma luta injusta. Não que Eva fosse sua adversária, mas ela mostrou que estava disposta a estar ao seu lado, lutando, ajudando-o a exorcizar esses demônios. Mas como poderia, se ela não sabia o que estava confrontando? Como poderia ser sua cura, se não sabia a doença que o acometia?
Gideon esteve, por muito tempo, enfrentando tudo sozinho, e estava acostumado. Porém as coisas mudaram de figura. Finalmente, ele havia encontrado uma pessoa que não hesitaria em acreditar nele. Que o conhecia melhor do que ninguém. Ele sabia que seria para sempre e não desistiria de tê-la. Havia muitas coisas quebradas, muitas pontes queimadas, muitas palavras não ditas. Porém o tempo de se esconder havia acabado. A escuridão já não podia mais existir. Não quando o sol estava ali, pronto para trazer vida e beleza.
O homem frio e implacável estava pronto para quebrar seu coração novamente, mas para deixar que a luz entrasse.
...
Gideon
Sei que essa conversa será difícil. Por mais que Eva me ame, posso ver em seu olhar, que ela está machucada. E, assim como eu, está sobrevivendo. Não posso mais deixá-la no escuro.
“Ver você dirigindo me deixa com tesão”, comenta, interrompendo meus pensamentos.
E eu aqui preocupado com os rumos que nossa conversa pode tomar.
“Minha nossa”, olho para ela. “você tem um fetiche por meios de transporte”.
“Tenho um fetiche por você”, rebate num tom de voz grave. “Já faz semanas”.
“E estou odiando cada segundo”, sibilo. “É um tormento pra mim, Eva. Não consigo me concentrar. Não consigo dormir. Perco a cabeça por qualquer besteira. Estou vivendo no inferno sem você”.
Ela se vira para me encarar. “Por que está fazendo isso com a gente?”
“Vi uma oportunidade surgir e resolvi aproveitar”, trinco o maxilar me lembrando de tudo que tenho sofrido nessas últimas semanas. “Essa separação é o preço a pagar. Mas não vai durar pra sempre. Você precisa ter paciência”.
Ela sacode a cabeça. “Não, Gideon. Não consigo. Não aguento mais”.
“Você não vai me deixar. Não vou permitir isso”, determino.
“Mas eu já deixei. Você não percebeu? Estou vivendo minha vida, e você não tem participação nenhuma nela”.
“Estou participando como posso”, contesto indignado.
“Mandando Angus me seguir? Qual é? Isso não é um relacionamento. Pelo menos não o que eu quero”.
“Eva”, solto o ar com força. Essa mulher não faz a menor ideia de que tenho feito muito mais do que mandar Angus segui-la. “Meu silêncio é dos males o menor. Mesmo se eu explicasse tudo teria que manter você à distância, e isso ainda implicaria um risco. Você pode até achar que quer saber, mas tenho certeza de que vai se arrepender se eu contar. Confie em mim. Existem algumas coisas ao meu respeito que é melhor nem virem à tona”.
“Você vai precisar me dizer pelo menos algumas coisas”. Os músculos da minha coxa se enrijecem em reação ao seu toque. “Não sei o que pensar. Estou totalmente perdida”.
Ponho minha mão sobre a sua, simplesmente porque preciso tocá-la. “Você acredita em mim. Apesar de tudo o que viu, continuou acreditando. Isso é importantíssimo, Eva. Pra nós dois. Pra nossa relação”.
“Não temos mais relação nenhuma”, insiste.
Teimosia devia ser seu nome do meio. “Pare de dizer isso”.
“Você queria minha confiança cega e conseguiu, mas isso é tudo o que tenho a oferecer. Aceitei conviver com o fato de não saber quase nada a seu respeito porque tinha você. Agora não tenho mais...”.
“Tem sim”, protesto. Eu não poderia ser mais dela do que já sou.
“Mas não da maneira que quero e preciso”, rebate. “Você me entregou seu corpo e eu me satisfiz com ele, porque era sua maneira de se abrir pra mim. Agora que não tenho mais isso, só sobraram promessas. E só isso não basta. Na sua ausência física, tudo o que tenho é o monte de coisas que você se recusa a me dizer”.
Continuo a olhar para frente ouvindo atentamente cada uma de suas palavras. Nenhuma delas é mentira. Essa é a descrição exata do que fiz a ela. Eu abri uma pequena ferida, lá atrás, na primeira vez em que a afastei. E, ainda que de forma inconsciente em certas ocasiões, acabei a abrindo cada vez mais.
Ela retira a mão de minha coxa e me dá as costas, olhando para a janela, como se houvesse algo de muito interessante no trânsito movimentado e barulhento.
A simples ideia de infligir dor a Eva me faz sentir horrível. E apenas imaginar como seria se ela me rejeitasse, faz um nó se formar em minha garganta.
“Se eu perder você, Eva”, minha voz sai embargada, “não vai me sobrar mais nada. Só estou fazendo tudo isso pra não te perder”.
“Preciso de mais”, murmura. “Se não puder ter você fisicamente, preciso ter acesso ao que existe dentro de você, mas isso eu também não posso ter”.
Um silêncio nada confortável se instaura dentro do carro, que conduzo lentamente pelo trânsito matinal. Um pingo grosso de chuva cai sobre o para-brisa, causando um estalo forte, e é seguido por outro e mais outro.
Não há mais o que esconder. Eu apenas... Tenho que falar. “Relacionamentos são vias de mão dupla, Gideon”, ela disse uma vez. Eu quis tomar conta de tudo, quis carregar o mundo nas costas, e me esqueci de que sou apenas um ser humano como qualquer outro, com um passado obscuro, um coração magoado e uma grande ferida na alma. Eu não preciso enfrentar isso sozinho. Não há equilíbrio se duas metades não estão em sintonia.
“Quando meu pai morreu”, começo, “custei a me acostumar com as mudanças. Lembro que as pessoas gostavam dele, estavam sempre por perto. Afinal, ele estava ganhando dinheiro pra um monte de gente. De repente o mundo virou de cabeça pra baixo e todo mundo começou a odiá-lo. Minha mãe, sempre tão feliz, começou a chorar o tempo todo. E a brigar com ele todos os dias. Isso foi o que mais me marcou... discussões e gritaria o tempo todo”.
Não havia um dia desde que as falcatruas de Geoffrey foram descobertas, que os dois não brigavam. Lembro que Elizabeth até mudou de quarto.
A morte do meu pai ainda é um mistério. Sempre achei que havia muito mais nisso do que o que sei. Em um determinado momento, até cogitei investigar a história, mas desisti. Não valia a pena revirar essa sujeira.
“Ela logo se casou de novo”, continuo. “Mudamos de casa. Ela engravidou. Nunca sabia quando ia encontrar alguém que tinha se fodido por causa do meu pai, e as outras crianças me maltratavam muito. Por causa dos pais delas. E os professores também. A notícia correu o mundo. Até hoje as pessoas comentam sobre meu pai e o que ele fez. Fiquei morrendo de raiva. De todo mundo. Tinha acessos de fúria o tempo todo. Quebrava coisas”.
Paro no sinal e sinto minha respiração se acelerar ao perceber que estou chegando ao cerne do meu pesadelo. “Quando Christopher nasceu, meu comportamento piorou ainda mais. Com cinco anos, ele resolveu agir como eu, dando um chilique na mesa de jantar e atirando o prato no chão. Minha mãe estava grávida de Ireland na época, e ela e Vidal decidiram que eu precisava fazer terapia”.
Não me viro para encarar Eva em momento algum, mas posso sentir seu olhar sobre mim, bem como ouvir seu choro. Ela não diz uma palavra.
“A terapeuta e o estagiário dela iam até a nossa casa. No começo foi tudo bem. Eles eram simpáticos, compreensivos, pacientes. Só que em pouco tempo a terapeuta começou a dirigir sua atenção principalmente pra minha mãe, que estava no meio de uma gravidez difícil com dois meninos incontroláveis pra domar. Passei a ficar cada vez mais tempo sozinho com ele”.
Procuro um acostamento e estaciono o carro, colocando-o em ponto morto. Agarro o volante com toda a minha força, engolindo em seco, como se isso fosse me dar coragem suficiente para continuar meu relato. Centenas e centenas de pingos de chuva despencam do céu escuro como minha alma, causando vários estalos no para-brisa. Os barulhos ensurdecedores do transito nova-iorquino parecem tão distantes. É como se nós estivéssemos envolvidos em uma bolha, completamente isolados do mundo.
“Não precisa dizer mais nada”, Eva se manifesta pela primeira vez, num sussurro baixo. Ela solta o cinto de segurança e se aproxima de mim. Sua pequena mão molhada com suas lágrimas toca meu rosto. E seu gesto me motiva a seguir em frente. Ela merece saber a verdade, embora eu não possa evitar me sentir envergonhado.
Respiro fundo a ponto de minhas narinas se expandirem. As cenas daqueles momentos vêm a minha mente tão nitidamente, que parece que estou em um canto do meu antigo quarto, assistindo a tudo como um mero espectador.
“Ele me fazia gozar. Só parava quando eu gozava, pra poder dizer que eu tinha gostado”.
Não sei como, mas no segundo seguinte Eva está em meu colo. Ao sentir seu cheiro e ao registrar o contato de nossas peles, meus braços a apertam com força. Meu corpo começa a chacoalhar violentamente. Eu não quero chorar, porque Eva se manteve tão forte quando me contou sobre o abuso que sofreu. E isso aumentou ainda mais minha admiração por ela. 
Eva segura minha cabeça entre as mãos e encosta seu rosto molhado no meu.
“Calma, meu amor”, diz, “eu entendo. Sei como isso funciona, a maneira como eles distorcem tudo. Sei como é a vergonha e o sentimento de culpa. Você não queria nada daquilo. Não estava gostando”.
“No começo eu permitia que ele me tocasse”, sussurro. “Ele disse que na minha idade... com os hormônios... eu precisava me masturbar pra me acalmar. Pra deixar de sentir raiva o tempo todo. Ele disse que ia me mostrar como era. Que eu estava fazendo errado...”.
“Gideon, já chega”. Eva recua para me olhar nos olhos. “Você era uma criança nas mãos de um adulto que sabia manipular muito bem as pessoas. Eles querem que tudo pareça ser culpa nossa, pra não ter que responder pelo crime, mas não é verdade”.
Ela beija minha boca, fazendo-me sentir o gosto salgado de suas lágrimas.
“Eu te amo. E acredito em você. Sei que nada disso foi culpa sua”.
Creio que o céu está derramando todas as lágrimas que me seguro para não derramar. Ter os braços de Eva à minha volta me faz sentir não apenas seguro, mas também aceito, amado. Isso foi tudo que eu mais quis por parte da minha mãe. Mas agora eu tenho um anjo, meu próprio anjo, e nada que eu fizer será suficiente para demonstrar o quanto sou grato por ter sido abençoado dessa forma.
Necessitado de um contato mais profundo eu agarro seus cabelos, mantendo-a parada enquanto começo a atacar sua boca com beijos famintos e desesperados.
“Não me deixe”, murmuro afastando meus lábios.
“Deixar? Eu vou é casar com você”.
Inspiro profundamente. Mal sabe ela que isso já está sendo providenciado. E, como sempre, sem o menor esforço, Eva me deixa com tesão. Puxo-a para mais perto, percorrendo seu corpo com as mãos de forma bruta.
Eva pula em meu colo ao ouvir batidas na janela, me fazendo ficar em estado de alerta. Um policial com capa de chuva, quepe e colete de segurança nos lança um olhar severo através do para-brisa, que não tem filme.
Com certeza providenciarei isso para evitar futuras interrupções.
“Vocês têm trinta segundos para sair daqui, ou vão ser indiciados por atentado ao pudor”.
Com um rubor adorável tomando conta de sua face, Eva volta para seu assento desajeitadamente. Espero ela afivelar o sinto e, assim que o faz, engato a marcha, bato na sobrancelha com o dedo para cumprimentar o policial e ponho o carro em movimento novamente. Finalmente eu tinha consertado ao menos um dos estragos que fiz. Porém, as palavras de Ireland me lembram de que ainda falta algo.
 “A Eva já confessou até para mim que é apaixonada por você e você é incapaz de dizer que a ama. Ok, você demonstra. E acredite, esse é o caminho, mas a verbalização também é muito importante”.
Pego a mão de Eva, levo até a boca e beijo a ponta de seus dedos. “Eu te amo.”
Seu corpo paralisa. Deixando que ela absorva a informação, enlaço nossos dedos e posiciono nossas mãos sobre minha perna.
“Fala de novo”, murmura.
Paro em um sinal, viro a cabeça e a olho. Essa mulher é minha força, é o que me movimenta, o que me faz sentir vivo. Mesmo exausto física e emocionalmente, vale a pena. Tudo vale a pena quando se trata dela. Ainda há muita escuridão em mim, mas Eva não tem medo dela.
Cheio de esperança e tomado por uma ternura sem limites, abro um leve sorriso e repito.
“Eu te amo. A palavra certa não é bem essa, mas eu sei que é isso que você quer ouvir”.
“Que preciso ouvir”, diz num tom ameno.
“Desde que você entenda a diferença...” replico.
O sinal abre e arranco com o carro.
“As pessoas conseguem esquecer um amor. Conseguem viver sem ele, seguir em frente. É possível perder um amor e encontrar outro. Comigo isso não vai acontecer. Não vou sobreviver a você, Eva”, finalmente, consigo por em palavras o sentimento que tenho dentro de mim.
Olho profundamente em seus olhos. “Estou obcecado, meu anjo. Viciado. Você é tudo que sempre quis e precisei. Tudo com que sempre sonhei. Você é tudo. Eu vivo e respiro por você. Por você”.
Ela põe sua outra mão sobre nossos dedos entrelaçados. “Tem tanta coisa no mundo te esperando... Só falta você descobrir”.
“Não preciso de mais nada”, rebato firme. “Só tenho vontade de pular da cama de manhã e encarar o mundo porque você está nele”.
Viro a esquina e estaciono na frente do Crossfire, atrás do Bentley. Desligo o motor, solto o cinto de segurança e respiro fundo antes de continuar minha confissão. “Por sua causa, vejo as coisas de uma maneira que era incapaz de enxergar antes. Agora tenho um lugar no mundo, que é ao seu lado”.
Vejo em seu olhar que ela compreende o porquê de eu ter lutado tanto para me tornar quem sou, porque preciso dominar cada aspecto da minha vida e as pessoas em volta. Porque, até então, ser Gideon Cross era melhor do que ser um ninguém.
Mas ser o Gideon moldado e mudado por Eva é mais do que eu ousaria sonhar.
Passo os dedos pelo seu rosto num toque suave, mas cheio de significado.
“Quando você vai voltar pra mim?”, pergunta baixinho.
“Assim que puder”. Inclino-me para frente e beijo sua boca. “Espere”.
/***/
Chego ao escritório me sentindo muito mais leve. Cansado e abatido, é verdade. Porque me lembrar do passado, de cada abuso, de cada mau trato, foi absurdamente doloroso. As memórias vieram tão vivas, que era como se eu estivesse tendo um dos recorrentes pesadelos, porém acordado. Mas agora me sinto melhor. Colocar para fora em voz alta tudo o que passei foi catártico. Aquele gosto amargo saiu da minha boca. O leve incômodo que sempre me acompanhava sumiu. E me sinto mais confiante também, mais tranquilo. Apesar de Eva não estar aqui, sinto que ela está comigo, pensando em mim. É uma sensação reconfortante.
Como pude ser tão estúpido em pensar que Eva se afastaria de mim? Que não me aceitaria?
A manhã passa rapidamente. Resolvo almoçar aqui mesmo no escritório. Porém antes que eu tenha a chance de chamar Scott pelo interfone, meu celular toca em cima da mesa. Olho o visor. Mensagem de Angus.
*A senhorita Tramell acaba de sair para almoçar acompanhada do senhor Vidal Jr.*
Eu deveria sentir raiva, um ódio escomunal. Deveria ir atrás deles e puxar aquele merdinha pelo braço e lhe dar tantos socos até que ele ficasse inconsciente. Mas nada disso acontece. Sinto uma paz inédita. Ao invés de estourar, chamo Scott e ordeno que providencie meu almoço. Em seguida, acesso o telefone do ramal do ramal de Eva. Sim, eu o grampeei e não tenho a menor vergonha disso. Apenas queria confirmar o que eu já sabia. Ouço a conversa deles.
Alô”, atendeu o merdinha.
Oi Christopher. Aqui é Eva, tudo bem?
Eva!”, sua voz ficou mais suave. “Que surpresa maravilhosa. Estou bem melhor agora que ligou”, rolo os olhos para seu charme barato. “E você?
Estou ótima. Escute, quero te convidar para almoçar. Topa?
Almoçar com uma linda mulher?” A satisfação é perceptível em sua voz. Imbecil. “Com certeza”.
Qualquer dia da semana pra mim está ótimo”.
Que tal hoje mesmo?”, ele sugeriu. “Vira e mexe sinto vontade de voltar àquela delicatéssen onde você me levou daquela vez”.
Por mim tudo bem. Pode ser ao meio-dia?
Claro, eu passo ai para te buscar”.
Ok, nos encontramos na portaria”.
Combinado. Um beijo querida”.
Outro”. Christopher desligou, mas Eva continuou na linha. “Babaca”, e pôs o telefone no gancho.
Minha cabeça pende para trás e começo a gargalhar. Tanto que meus olhos se enchem de lágrimas. E assim fico por um bom tempo, até que, enfim, começo a me acalmar. Então quer dizer que o próximo na lista da Inquisição será Christopher? Há um mês, eu estaria desesperado. No entanto, tudo que consigo é achar graça de tudo. Em seguida, pego o telefone e disco o ramal da segurança.
Johnson”, a voz potente de Ben se faz ouvir.
“Cross. Preciso falar com Charlie”.
Sim senhor”.
Segundos depois Charlie atende, com sua voz muito parecida com a do pai.
Senhor Cross?
“Assim que a senhorita Tramell entrar, conduza-a até a sala de segurança”.
Positivo”.
“E Charlie? Quero privacidade total. Para todos os efeitos, ninguém estará naquela sala”.
Sim senhor”.
Desligo ao mesmo tempo em que o interfone toca. Scott avisa que minha refeição acaba de chegar.
Ele vem até minha sala para entregá-la e o libero para o horário de almoço.
Saboreio meu bife à parmediana com vontade, apenas esperando o momento de descer. Assim que termino, jogo a embalagem fora, vou até o banheiro escovar os dentes, pego o terno, e me encaminho para os elevadores.
Chego à sala de segurança e apenas aguardo encostado na escrivaninha, com os braços cruzados. Dez minutos depois a porta se abre revelando a figura voluptuosa de Eva. Suas curvas abraçadas por um vestido cinza sem mangas que a deixa simplesmente deliciosa. Seu rosto tomado pela surpresa, pela curiosidade, e pela luxúria. A porta se fecha atrás dela e suspiro, balançando a cabeça.
“Quantas pessoas você ainda vai interrogar por minha causa?”, pergunto.
“Você está me espionando de novo?” estreita os olhos.
“A expressão certa é ‘tomando precauções’”.
Ela ergue uma das sobrancelhas. “Como você sabe se eu o interroguei ou não?”
Meu sorriso se abre ainda mais ao me lembrar do telefonema. “Eu simplesmente sei”.
“Bom, não foi esse o caso”. Lanço-lhe um olhar de descrença. “De verdade Não mesmo”, reafirma. “Eu ia fazer isso, mas mudei de ideia. E por que a gente está nesta sala?”
“Você está envolvida em algum tipo de cruzada, meu anjo?” pergunto. 
“Você percebeu que sua reação ao meu almoço com Christopher foi bem tranquila?” comenta enquanto me analisa atentamente. “Assim como minha reação às suas saídas com Corinne? Estamos agindo de uma maneira bem diferente de um mês atrás”.
“Confiamos um no outro, Eva. E isso é bom, não é?”
É um alívio, para ser mais exato.
“Mas a confiança não significa que eu esteja menos perplexa com o que está acontecendo entre nós”, rebate. “Por que estamos escondidos nesta sala?”
“Para todos os efeitos, não estamos aqui”. Eu me levanto e vou até ela.
Pegando seu rosto entre as mãos, levanto sua cabeça e a beijo suavemente. “Eu te amo”, sussurro.
“Você está ficando bom nisso”, murmura derretida.
Passo os dedos por seus cabelos curtos. “Lembra aquela noite em que você teve o pesadelo? Você quis saber onde eu estava”.
“E ainda quero”, pontua. Eu já imaginava isso.
“Eu estava no hotel, desocupando aquele quarto. Meu matadouro, como você diz. Contar isso enquanto você vomitava até virar o estômago do avesso não me pareceu uma boa ideia”, explico.
Ela suspira profundamente, ao mesmo tempo incrédula e aliviada. Aquele quarto a incomodava ao extremo. Era uma dos motivos que abalavam sua confiança em mim. Eu não poderia me permitir perdê-la por causa disso.
Eu a olho com carinho. “Eu tinha esquecido completamente aquele quarto, até aquele dia no doutor Petersen. Nós dois sabemos que eu nunca mais vou precisar dele. Minha garota não gosta muito de camas, prefere transar em veículos em movimento”.
Sorrio e saio da sala. Tudo vai ficar bem. É nisso que quero acreditar.
No que tenho que acreditar.
/***/
Acabei indo para o apartamento ao lado do de Eva. De alguma forma, eu precisava ficar perto dela. Além do quê, o novo morador tem que dar o ar da graça de vez em quando. Liguei para Ireland, e ficamos conversando por um tempo. Ela ficou radiante ao saber que eu estava começando a me reaproximar de Eva. Minha irmã se mostrou tão leal e verdadeira comigo, de uma forma totalmente inesperada. Eu a considero a única família que tenho, e estou satisfeito com isso. A paz em mim era tão grande que acabei tendo uma ótima noite de sono.
Já nesta manhã fiquei sabendo que os detetives foram até o escritório de Stanton tirar cópias das fitas das câmeras de segurança. Shelley Graves deve estar ensandecida atrás de um culpado pelo assassinato de Nathan. Ela foi ao hotel onde dei a festa da Kingsman, pelo menos, umas três vezes. A essa altura também já deve saber não só do incêndio na cozinha, mas também que o hotel onde Nathan estava hospedado, cujo terceiro andar foi interditado, pertence a uma de minhas subsidiárias. Mesmo com essas evidências, não havia nada que me ligue ao crime e isso é um ponto ao meu favor. No entanto, não posso simplesmente fingir que nada aconteceu e voltar para Eva. Tenho que esperar ao menos o caso ser arquivado, para assim começar a me reaproximar dela publicamente, aos poucos.
Além disso, surgiu um pequeno imprevisto. Aquele amigo drogado de Cary em quem dei um soco está ameaçando me processar por agressão. Liguei para meu advogado para conversar sobre um acordo financeiro a portas fechadas. Obviamente o objetivo dele é dinheiro. Ele viu em mim uma mina de ouro e quer tirar vantagem. Não que isso me preocupe. Ian é um pobre coitado. Só que ter uma coisa dessas saindo nos jornais não seria favorável no momento. Enquanto as investigações continuarem, não posso me envolver em escândalos que me vinculem a Eva. Quanto mais eu puder evitar, melhor.
Após o trabalho fui para a CrossTrainer malhar um pouco. Estava me sentindo energizado. O dia foi bem estressante e eu precisava de um treinamento pesado para descarregar a tensão. No entanto, o que era para me deixar relaxado, me deixou incomodado. Eu me senti observado o tempo todo. Claro que minha beleza chama a atenção e várias mulheres ficaram me secando, mas o que eu sentia não era nesse sentido. Era como se alguém estivesse me vigiando, analisando cada movimento meu. Algo me diz que grandes reviravoltas estão para acontecer, e terei que estar preparado para isso.
As portas do elevador se abrem e saio de lá disposto a tomar uma boa taça de vinho e trabalhar um pouco antes de dormir. Mas meu corpo trava no caminho. Eva está sentada à porta do meu apartamento. Ela me olha diretamente nos olhos e tenho a nítida impressão de que algo aconteceu. Continuo a encará-la, ainda imóvel.
“Não tenho mais a chave daqui”, explica.
Eu me abaixo, deixando nossos olhares rentes. “Eva? O que aconteceu?”
“Encontrei por acaso com a detetive Graves”, ela engole seco. “Eles vão arquivar o caso”.
Suspiro profundamente, de forma que meu peito se expande. E então tudo fica claro. Eva sabe de tudo. Não tem mais como esconder. Graves é uma mulher extremamente inteligente. Nunca duvidei de sua capacidade de raciocínio nem de seu faro. Ela juntou as peças e descobriu meu plano. Na prática, não passam de suposições, porém nada disso é suficiente para atenuar o desolamento que estou sentindo nesse momento.
Caio de joelhos, baixo minha cabeça e espero. Tenho plena consciência de que fiz uma monstruosidade, mas não me arrependo. Finalmente cumpri minha missão de salvá-la. Eva é e sempre será minha prioridade.
Agora nosso futuro depende única e exclusivamente dela, que pode não aceitar o que fiz. Ela está aqui apenas para olhar em meus olhos para confirmar o que soube, e talvez me afastar de sua vida para sempre.
Sempre fui um homem de ações. Para mim, palavras nada significam se não houver atitudes que as corroborem. Também nunca fiz nada pela metade. Sou um ser intenso. Quando me proponho a algo, vou até o fim. E isso vale para todas as áreas da minha vida. Não poderia ser diferente com Eva. Eu faria tudo por ela, simplesmente porque ela me tem nas mãos. Eu seria tudo o que ela quisesse. Se eu tivesse que passar o resto da minha vida em penitência para vê-la feliz, eu não pensaria duas vezes. Não há mais volta. Nossas almas estão entrelaçadas, nossos destinos cruzados para sempre.
De repente, ela se ajoelha diante de mim e levanta meu queixo, acariciando meu rosto com as mãos e a boca. Posso sentir sua gratidão em cada toque. Tremo de emoção, de alívio, de desejo. Prendo seu corpo em um abraço forte e enterro o rosto em seu pescoço.
“E agora, vamos fazer o quê?” minha voz sai abafada.
Seus braços também me apertam, trazendo-me para mais junto dela. “O que for preciso pra ficarmos juntos”.
Eu não sei o que será de nós daqui para frente. As coisas se modificam na velocidade da luz o tempo e tudo o que posso fazer é deixar a vida seguir seu curso, para onde quer que ela nos leve.
Não sei por quanto tempo ficamos assim. Mas em algum momento Eva toma a iniciativa de desvencilhar nossos corpos.
“Eu... preciso ir”.
Franzo o cenho sem entender.
“Não posso ficar aqui. O caso ainda não deve ter sido oficialmente arquivado. É arriscado”, explica.
Balanço a cabeça em concordância. “Eu peço para Angus levá-la”.
“Não precisa. Acho melhor eu ir de táxi”.
Entendo seu gesto como um pedido de espaço. É muito para digerir. Eva se levanta do chão e sigo seu exemplo.
“Desço com você”, ofereço.
“Melhor não. Vou ficar bem, não se preocupe”.
O mais estranho é que ela não olha para mim em momento algum. Sinto uma pontada dolorosa em meu peito só de imaginar que ela pode estar com medo de mim.
“Tem certeza?”, pergunto levantando seu queixo com os dedos, forçando-a a me encarar.
“Sim”, sussurra e me lança um sorriso fraco.
Pego sua mão, entrelaço nossos dedos, e a levo para o elevador.
Aperto o botão e esperamos em silêncio a cabine subir. Por mais que eu a tenha aqui tão perto, é como se ela estivesse a quilômetros de distância.
As portas de alumínio se abrem. Eva se ergue na ponta dos pés, me dá um selinho e segue para dentro de elevador.
Ela aperta o botão do térreo e me encara com seus olhos brilhantes de lágrimas não derramadas.
“Eu te amo demais”, sussurra com a voz embargada e, em seguida, as portas se fecham.
Começo a arfar. De dor, de desespero, de tristeza, de raiva. Entro em meu apartamento sem saber o que fazer. Eu me sento no sofá, coloco minha cabeça entre os joelhos tentando conter a crise de pânico que ameaça se desencadear.
Com o tempo, vou me acalmando e minha mente começa a funcionar com mais clareza. Eva não disse com todas as letras que não me quer. Ela não me rejeitou. Eu ainda tenho uma chance. Corro para o quarto, visto uma calça jeans, o moletom da Columbia, um boné de beisebol; coloco o celular e a carteira nos bolsos, e desço pelas escadas, passando pela garagem. Pego as chaves da Mercedes e, segundos depois, estou na rua, a caminho do apartamento de Eva.
O amor não é para pessoas fracas, que não estão dispostas a passar por provações. Todos querem que se acenda uma chama de um sentimento verdadeiro dentro de si, mas não querem se queimar. Meu sentimento por Eva é como um incêndio se alastrando pela palha, como uma lava vulcânica pronta para engolir tudo o que vir pela frente. E nada mais posso fazer a não ser me deixar ser consumido.

O Amor...
É difícil para os indecisos.
É assustador para os medrosos.
Avassalador para os apaixonados!
Mas, os vencedores no amor são os fortes.
Os que sabem o que querem e querem o que têm!
Sonhar um sonho a dois, e nunca desistir da busca de ser feliz é para poucos!
Cecília Meireles


Ainda teremos epílogo. Portanto, não vou me despedir ainda. Bom Carnaval para vocês. Curtam bastante e tomem cuidado!
Beijos e até semana que vem!

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