sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Profundamente Minha: Capítulo 22 — Cega (Bônus)



Boo! Apareci antes da hora! Sabe para quê? Para lhes presentear com um capítulo bônus! Pois é, tive um surto criativo e resolvi escrever. 
Boa leitura!
 
A pior cegueira é a dos que não sabem que estão cegos.
—Clarice Lispector

Narrado por Elizabeth Vidal
Depois que Gideon saiu de casa, ficou cada vez mais difícil vê-lo. Ele evita qualquer tipo de contato. Começou trocando o número do celular. Depois, a viagem para a Itália. E mesmo após eu ter ficado amiga dos pais de Arnoldo, quando ele retornou, as coisas continuaram as mesmas. Eu já esperava que ele ficasse magoado, ou, na melhor das hipóteses, que confessasse que estava inventando aquela história, mas jamais passara pela minha cabeça que ele levaria tudo a ferro e fogo. E assim foi com o passar dos anos.
O jantar organizado pela família de Corinne para celebrar o noivado dos dois, de que fiz muito gosto, foi um desastre. Eu tinha apostado todas as minhas fichas naquele evento. Achava que minha nora poderia me ajudar, mas ela não tinha ideia do tipo de relacionamento que ele mantinha conosco. Quando Gideon chegou acompanhado dela percebi que, além de não saber que estaríamos presentes, ele não nos queria lá. Não fez questão de olhar para nenhum de nós durante o jantar, não disse uma palavra sequer. Foi constrangedor. Meses depois, por intermédio de Magdalene, fiquei sabendo do rompimento e da partida de Corinne para a França.
Ao vê-lo pisar em nossa casa pela primeira vez em 10 anos, e ainda por cima em uma festa, fiquei extasiada. Talvez Gideon quisesse se reaproximar. E esperava que Eva fosse o caminho para isso. Era uma garota adorável, de boa família e linda. Confesso que me assustei ao constatar que ela era loira. Sempre pensei que Gideon ainda era apaixonado por Corinne e que, por esse motivo, desfilava para cima e para baixo com diversas beldades morenas.
Eu estava enganada. Em tudo.
Para começar, Gideon não queria se relacionar conosco. Ele era o único que levava o sobrenome do pai e isso pode ter criado a falsa ideia de que ele não pertencia a nossa família, e que se reforçou ainda mais quando Christopher nasceu. Nunca quis que meus filhos fossem desunidos, mas as consequências psicológicas que o suicídio de Geoffrey teve sobre Gideon destruíram todas as chances de sermos plenamente felizes. A mágoa e o ódio eram visíveis em seus olhos, em sua postura fria. Todos os gestos carinhosos e sua atenção eram apenas para a nova namorada. Pela forma como ele a abraçava, parecia que estava tentando protegê-la de nós. Eu a convidei para jantar conosco, num pedido velado de ajuda, mas eu sabia que seria inútil. Gideon nunca permitiria.
Em segundo lugar, eu havia me decepcionado com Eva. Ela se mostrou uma vadia ao me confrontar daquela maneira.

Meu marido e meu filho estavam no Manhattan Club para tentar fechar um contrato com um cantor do interesse da gravadora. E fui acompanhá-los. Em um determinado momento, Christopher se virou para mim e comentou.
“Olha, mãe. Eva está aqui”.
“Eva?”, me virei imediatamente.
“Bem ali dançando com aquele amigo dela, o Cary”.
Ele apontou discretamente para uma moça loira de cabelos curtos.
“Querido, aquela não é a Eva. Ela tem cabelos cumpridos”.
“Tenho certeza que é ela. Vou até lá convidá-la para dançar”.
“Ok”.
Ele saiu bem quando a música terminou. Em seguida, os dois estavam dançando. Torcia para que Eva também fizesse uma ponte entre Christopher e Gideon. Tenho certeza que foi ela quem incentivou a aproximação entre ele e Ireland. Olhei meu delicado relógio de pulso e percebi que era hora de retocar a maquiagem. Pedi licença para ir ao toalete. Quando saí, dei de cara com Eva. Era realmente ela. E estava deslumbrante. Dava para entender o porquê de Gideon estar apaixonado.
“Eva”, cumprimentei com beijos estalados no ar para não borrar o batom. “Christopher bem que falou que era você. Nem a reconheci. Você está tão diferente com esse cabelo. Ficou uma graça”.
 “Obrigada. Preciso falar com você. Em particular”.
“Ah, é?” Franzi a testa anti sua seriedade. “Aconteceu alguma coisa? É sobre Gideon?”
“Venha comigo”, ela fez sinal para continuarmos andando pelo corredor, na direção da saída de emergência.
“Do que se trata?” perguntei incapaz de conter minha curiosidade.
Quando nos afastamos dos banheiros, ela começou a falar. “Lembra quando Gideon era criança e contou que tinha sido abusado?”
Empalideci imediatamente. Eu não podia acreditar que ela sabia dessa história. “Ele te contou sobre isso?”
“Não. Mas vi os pesadelos que ele tem. Pesadelos horrorosos, violentos, em que grita por misericórdia”, sua voz estava carregada de raiva. Eu me senti envergonhada, obviamente, por não saber dessas coisas, mas não ia baixar a cabeça para ela. 
“Era sua obrigação proteger e ajudar seu filho!” completou exasperada.
Levantei o queixo. “Você não sabe...”.
 “O que aconteceu antes de você ficar sabendo não foi culpa sua”, ela deu um passo à frente e, instintivamente, dei um para trás. “Mas você tem total responsabilidade sobre o que aconteceu depois de ele ter contado”.
“Vá à merda”, soltei raivosa. “Você não sabe do que está falando. Que desrespeito é esse? Falando comigo desse jeito, fazendo acusações sem o menor cabimento?”
Ela rebateu. “Desrespeito coisa nenhuma. Seu filho é uma pessoa profundamente traumatizada por causa disso, e sua recusa em acreditar nele tornou tudo mil vezes pior”.
“Você acha que eu permitiria que meu próprio filho fosse violentado?” Podia sentir meu rosto e meus olhos arderem ao me lembrar daqueles momentos. “Gideon foi examinado por dois pediatras diferentes à procura de... indícios. Fiz tudo o que estava ao meu alcance”.
“A não ser acreditar nele. O mínimo que poderia fazer como mãe”.
“Sou mãe de Christopher também. Ele estava lá e jura que não aconteceu nada. Em quem eu acreditaria se não havia provas? Nada confirmava o que Gideon dizia”.
“Ele não precisava provar nada. Era só uma criança!” rosnou. Ela estava alterada, com os punhos cerrados, como se estivesse a ponto de me agredir. Eu podia sentir seu ódio, sua revolta. “Seu papel era ficar do lado dele, de qualquer maneira”.
“Gideon era um menino problemático. Fazia terapia para superar a morte do pai, estava desesperado por atenção. Você não sabe como ele era naquela época”, me defendi.
“Sei como ele é hoje. É um homem magoado e ressentido, que não sabe dar valor a si mesmo. E em boa parte por culpa sua”.
“Vá para o inferno!”, me virei e saí andando, incapaz de continuar ouvindo aquilo.
 “Já estou lá!”, eu a ouvi gritar pelas minhas costas. “Assim como seu filho”.
Voltei para o toalete e me tranquei em um dos reservados. Respirei uma, duas, três vezes para tentar me acalmar. Como essa insolente teve a coragem de me dizer tantas barbaridades? Quem ela pensa que é para julgar minhas atitudes?
Gideon estava perturbado demais, fazia de tudo para requerer atenção. Ele se sentia acuado por estar crescendo e vendo que Christopher demandava mais cuidados por ser pequeno e, consequentemente, pensava que estava sendo excluído da família.
Eu não esperava que Gideon fosse dizer isso a alguém, ainda mais para Eva, já que Corinne nunca soube. As palavras dela me atingiram. Eu tinha feito tudo o que podia como mãe. Jamais deixaria esse abuso passar se realmente tivesse ocorrido, mas não podia dar crédito para uma história inventada. Ele estava cada vez mais instável e violento. Teve até uma época de tranquilidade, quando começou a ter sessões particulares com o estagiário. Eu podia ver que Gideon gostava dele, o que tornava toda história ainda mais descabida. Após o veredito dos dois pediatras, percebi que se tratava de um delírio e não dei mais importância a isso. E foi nesse instante, que comecei a perder meu filho.

Como se não bastasse toda a dor que sinto por tê-lo distante, ela veio me julgar e jogar toda a culpa dos traumas de Gideon em minhas costas. Fui tão vítima quanto ele. Sofri tanto quanto ele. A culpa é e sempre será de Geoffrey, que foi um verdadeiro covarde ao se matar e nos deixar aqui para pagar pelos seus pecados. Eu nunca o perdoaria por isso. Eu morreria odiando esse homem e tudo que ele fez contra nossa família. Ele nos destruiu. E pensar que um dia eu o havia amado com loucura.
Voltei para casa naquela noite e desabafei com meu marido. Christopher é maravilhoso, um verdadeiro companheiro. Uma pessoa boa e sincera que sempre tentou mostrar a Gideon que o amava como pai. Após conversarmos, resolvi, finalmente, confrontar meu filho. Já era hora de colocar tudo em pratos limpos. Além do mais, eu queria lhe entregar o anel de noivado que Geoffrey havia me dado. Eu já tinha em mente passá-lo para Gideon.
No dia seguinte, fui até o escritório dele no Crossfire. Eu tinha muito orgulho do que se tornou, vencendo na vida por mérito próprio e de forma honesta. Ele nunca quis depender do dinheiro de Christopher. E, quando a Vidal Records estava passando por momentos complicados, Gideon comprou as ações de meu marido e as de Ireland, se tornando não apenas o sócio majoritário da empresa, mas também o dono. Claro, isso aumentou a rixa entre ele e o irmão, mas salvou nossa família da falência. E eu lhe seria eternamente grata por isso.
Cheguei à portaria do prédio, passei pelos procedimentos habituais de segurança e, em seguida, fui autorizada a subir. Quando as portas do elevador se abriram no último andar, tive mais uma prova do poder de meu filho: ele é dono do Crossfire, ele é um empresário rico e poderoso. Um homem independente. Senti mais orgulho ainda.
Cumprimentei a bela ruiva que estava na recepção, me identificando mais uma vez e segui para a baía do secretário de Gideon.
“Bom dia”, eu disse.
Ele se virou e, por um brevíssimo instante, quase imperceptível, ele pareceu surpreso, mas se recompôs. “Bom dia senhora Vidal”.
“Gideon está ocupado?”
“Ele acabou de chegar. Vou chamá-lo. Só um instante”.
Ele pegou o telefone e apertou um botão.
“Senhor Cross”, ele aguardou um instante e prosseguiu. “Há uma pessoa que está aqui para vê-lo, senhor... Não senhor, mas...” ele foi interrompido.
“É a senhora Vidal”. O secretário ficou um bom tempo em silêncio.
“Senhor Cross?” chamou de testa franzida. Fiquei momentaneamente assustada, mas logo me acalmei ao ouvi-lo dizer “Sim senhor” e finalizar a chamada.
Scott se vira para mim em seu tom profissional. “O senhor Cross irá recebê-la agora”.
“Obrigada”, sorri simpática e fui em direção às portas duplas de vidro. Respirei fundo antes de abrir uma delas e dar de cara com ele.
Meu filho é muito parecido comigo, mas o arranjo de sua beleza fora do comum veio de seu pai. O rosto dele é magnífico, de chamar a atenção por onde passa. Ele exala força, virilidade e segurança. Um homem que tem o mundo nas mãos e as mulheres aos seus pés. Seu belíssimo corpo estava envolto em um terno preto com risca de giz, pelo corte, eu diria se tratar de um Armani, camisa branca e gravata azul, no mesmo tom que seus olhos. Sua expressão fria, impassível e distante.
Fechei a porta atrás de mim.
“O que veio fazer aqui?” perguntou sem nenhuma emoção na voz.
“Parece que você esqueceu os bons modos que lhe ensinei”, comentei colérica enquanto tirava os óculos escuros do rosto.
“Sente-se”, sua voz saiu num tom seco.
Caminhei cautelosamente até sua mesa e me sentei em uma das cadeiras estofadas. Ele permaneceu de pé.
“E então?”, arqueou a sobrancelha.
Suspirei já me sentindo exausta de toda aquela frieza. “Querido, já faz tanto tempo que nós nos afastamos, eu...”.
“Tenho certeza que não se trata disso”, cortou. “Tenho uma reunião em meia hora. Seja rápida”.
Endireitei-me no assento tentando esconder a dor que senti por suas palavras e o indaguei sobre o fato de Eva saber sobre a história do abuso.
Ele franziu o cenho. “Como você sabe disso?”
“Porque ela teve a audácia de vir me confrontar”, respondi asperamente me lembrando da insolência dela. “Disse que a culpa de tudo isso era minha por não ter acreditado em você”.
“E não é?” disse irônico.
Senti meus olhos arderem e as lágrimas se acumulando nos cantos. “Você estava perturbado pela morte de seu pai. Não havia provas, como eu...”.
“A minha palavra deveria ter sido suficiente”, cortou secamente.
Não consegui me segurar. Comecei a chorar desesperadamente. Ele fez um movimento que não detectei de imediato.
Desabafei sobre tudo o que aconteceu. A mídia, os prejudicados pelo esquema de Geoffrey, nossos amigos, todos estavam nos massacrando.
 “Sei disso”, ele disse. “Eu também sofri. Mais do que você pode imaginar”.
Comecei a falar a esmo, relembrando aqueles momentos, e soluçando ao mesmo tempo. Uma dor sem medida se apoderou de meu coração. Eu me senti doente. O estrago que Geoffrey fez em nossas vidas foi maior do que eu pensava. Meu filho ainda tem muita mágoa de mim e talvez nunca me perdoe.
“Tome”, sua voz invadiu meus ouvidos e sua mão segurava um copo de água. Olhei para ele, com meu corpo ainda tomado por fortes soluços e peguei o copo. Dei pequenos goles na água, aliviando um pouco a queimação em minha garganta.
Gideon se levantou e se sentou em sua cadeira. Levei alguns instantes para me acalmar. Quando os soluços pararam, eu o encarei, encontrando seu olhar analítico sobre mim.
“O médico não detectou nada, Gideon. Seu irmão negou tudo também. A situação não estava favorável para que eu acreditasse em você”.
Ele fechou suas mãos em punhos e as apertou.
“Favorável”, murmurou entre dentes. “Favorável?”
Ele estava nervoso, muito nervoso.
“Filho, eu...”.
Ele me interrompeu novamente, esbravejando suas frustrações sobre eu ter acreditado em Christopher e não nele. Chegou ao cúmulo de acusar o próprio irmão. Aquilo me deixou um pouco indignada. Meu filho do meio poderia ter muitos defeitos e tinha uma inveja notória de seu irmão mais velho, mas nunca faria algo assim. Ele era uma criança.
 “Eu também era”, vociferou. “uma criança que passou anos sendo abusada por um homem que deveria me ajudar. Eu me sentia um lixo depois, porque sempre achei que a culpa era minha, que eu merecia passar por aquilo”.
“Gid...”.
“Nunca passou pela sua cabeça que o doutor Lucas poderia ter mentido para protegê-lo?”, ele me cortou mais uma vez. “Os dois eram cunhados. Eu fui acusado de inventar um abuso sexual porque, claramente, todos tinham alguém em sua retaguarda, menos eu. Você deveria ter tentado investigar a história, pelo menos”.
Meu Deus, ele não entenderia nunca! Aquela situação era insustentável, de um alto nível de estresse.
 “É muito mais fácil deixar pra lá, não é? Muito mais fácil acreditar que eu era um perturbado”, disse cheio de ressentimento.
“Gideon...”, tentei me explicar, mas sua pergunta seguinte me deixou sem chão.
“Você não acredita em mim, não é?” ele me olhou fundo nos olhos. “Você ainda acha que é uma invenção da minha mente doentia”.
Um soluço escapou da minha garganta, mas me mantive em silêncio, olhando fixamente para minha bolsa Chanel. Eu não sabia o que responder. Eu queria muito acreditar em Gideon, mas nenhuma das provas apontava para o que ele dizia. O doutor Lucas me pareceu um médico excelente e estava, de fato, muito sem graça com todas aquelas acusações. Foi de um profissionalismo ímpar ao julgar o caso e ainda recomendou vários nomes de psiquiatras que pudessem atender Gideon. Além do mais, tinha Christopher. Ele não mentiria para mim, não sobre algo tão sério.
“É melhor você ir embora”, disse por fim.
Levantei a cabeça, sentindo uma angústia sufocante. Mas achei melhor deixá-lo. Não adiantava forçar nada agora.
“Quero te entregar uma coisa antes de ir” sussurrei.
Revirei minha bolsa, peguei a caixinha de veludo preta com o anel de casamento que Geoffrey me deu e a pus em cima da mesa. 
Ele a pegou e a abriu. Seu olhar brilhou de repente, vagando para um pensamento que, certamente o deixou feliz por um instante. Talvez estivesse pensando em Corinne. Fiquei sabendo que eles saíram juntos em duas ocasiões recentes.
“Corinne iria amá-lo”, comentei na esperança de engatar uma conversa mais civilizada. Mal sabia eu que tinha dito as palavras erradas.
Ele me fuzilou com os olhos. “O que Corinne tem a ver com isso?”
“Bom... eu pensei... é que... eu vi fotos de vocês dois juntos...”, gaguejei desconsertada.
“Nós somos amigos, nada mais do que isso”, explica secamente. “Corinne é casada, muito bem casada e eu não tenho o menor interessem em reatar com ela”.
Tentei insistir sobre isso. Ele fechou a caixinha bruscamente e repetiu de maneira ríspida que não tinha a intenção de voltar para ela.
Arregalei os olhos e senti todo o sangue fugir do meu rosto. “Não precisa falar assim comigo. Eu sou sua mãe”.
Ele se levantou de supetão e meu deu as costas. “Você deixou de ser minha mãe no dia em que não confiou em mim. Você nada mais é do que minha progenitora”.
Arfei ao ouvir aquilo. Doeu, doeu mais do que uma agressão física. O estrago era grande demais. E me dei conta de que nada que eu fizesse seria suficiente para consertá-lo. Em silêncio me levantei para sair. Porém o principal motivo de eu estar ali me veio à mente. Perguntei por que ele tinha contado aquela história para Eva. Eles nem estão mais juntos e ela poderia muito bem, por vingança, ir aos tabloides revelar tudo. 
Gideon voltou a me encarar. “Isso não te diz respeito”.
“Claro que me diz respeito”, rebati. “Aquela insolente se achou no direito de me desmoralizar...”.
“Jogando a verdade na sua cara?” disse sarcástico.
Abri a boca em choque pelo seu jeito de falar comigo, mas me recompus. Eu tinha que me defender de alguma forma.
“Essa sujeitinha...”.
“Não se atreva”, gritou dando um forte tapa no tampão da mesa, me fazendo dar um pulo de susto e meus olhos se arregalarem mais uma vez. Eu nunca o tinha visto tão irritado como naquele momento. Ele me lançou um olhar homicida, que se fosse possível, poderia ter me matado.
 “Não se atreva a tocar no nome dela, não se atreva a falar o que quer que seja sobre ela. Podemos não estar juntos agora, mas isso não significa que ela não seja importante para mim. Eva acreditou em mim, Eva me defendeu, mesmo eu a tendo magoado. E eu a amo. Então não se atreva”.
A forma como ele disse isso me fez lembrar Eva. Na noite anterior, ela o defendeu com a mesma ferocidade.
Tentei acalmá-lo, mas ele sequer me escutou. Foi logo me mandando embora e dizendo que não faço parte da vida dele, e que, portanto eu não tinha o direito de me meter.
 “Eu te amo, filho”, sussurrei com a voz embargada. “Esse afastamento dói muito. Por favor, acredite em mim”.
Sua expressão fria e impassível deu lugar à raiva de outrora em um piscar de olhos. “A situação não está favorável para que eu acredite em você”.
Dei um passo para trás ao ouvi-lo repetir o que eu disse no início de nossa conversa. Sem ter como retrucar àquela acusação, peguei minha bolsa, pus os óculos escuros e me encaminhei para a porta.
Antes de sair, lancei-lhe um último olhar. Abri a boca para falar sobre Ireland, mas ele se virou de costas deixando claro não queria ouvir mais nada.
“Fico satisfeita por você estar se aproximando da Ireland”, eu disse mesmo assim. “Eu nunca a tinha visto tão radiante”, em seguida abri a porta e a fechei atrás de mim.
Aquela foi a primeira vez que consegui ficar a sós com Gideon depois de dez anos. E, no que dependesse dele, seria a última. Eu bem queria que Ireland pudesse me ajudar, mas não poderia envolver minha filha nisso sem contar-lhe a verdade, e foi combinado que ela não saberia de nada.
Repassei nossa conversa incessantemente, tentando entender tudo. A dúvida martelando em minha cabeça, principalmente o que Gideon disse sobre o doutor Lucas. Seria ele capaz de acobertar o cunhado? Mas e o outro pediatra? Senti uma fisgada na testa, um indicativo de que minha enxaqueca atacaria em breve. Esfreguei o local com as pontas dos dedos.
Antes que eu pudesse chegar ao quarto, fui interceptada por Christopher.
“Oi mãe” disse sorridente, porém ao ver meu rosto, seu sorriso se desmanchou. “Aconteceu alguma coisa? Desde ontem você está estranha”.
Eu tinha que tirar isso a limpo.
“Vamos até o meu quarto”, eu disse. Ele me seguiu.
Já lá dentro, Chris estava inquieto e curioso ante o meu silêncio. Tirei meus óculos para olhar bem para o meu menino. Ele e Gideon não poderiam ser mais diferentes em termos de aparência. Se os dois não fossem meus filhos, duvidaria que fossem irmãos. Christopher é a imagem e semelhança do pai quando mais jovem.
“Mãe, o que houve? Porque está me encarando desse jeito?” Ele se sentou em minha cama.
Respirei fundo antes de começar. “Eu vou perguntar uma única vez, e quero que você seja sincero comigo”.
“Claro”.
“Você não mentiu quando disse que não viu o que supostamente aconteceu com Gideon, não é?”
Imediatamente suas feições surpresas se transformaram em raiva e incredulidade.
“Eu não acredito! Você foi até ele? O que aquele desgraçado te disse?”
“Acalme-se”, eu disse assustada com sua reação. “Eu só precisava saber. Eu fui até o seu irmão para tentar conversar, esclarecer as coisas. Ele ainda afirma que sofreu o abuso”.
“É mentira”, gritou. “Esse cara é um babaca, mãe, você não está vendo? Ele está fazendo uma vingança ridícula porque ninguém caiu na historia patética dele. Claro que ele não iria admitir a verdade. Um homem como Gideon não sabe dar o braço a torcer”.
Pensei por um instante. Realmente, seria muito vergonhoso para Gideon admitir que suas acusações fossem resultado de mais um surto a fim de exigir atenção, no entanto, ao me lembrar da forma magoada e frustrada que me olhou, me senti mal.
“Mamãe”, a voz de Chris me despertou. Ele estava de frente para mim, com os olhos cheios de lágrimas. “Eu jamais mentiria para você, por favor, você tem que acreditar em mim. Eu e Gideon nunca nos demos bem, mas seria incapaz de prejudicá-lo dessa forma”.
“Eu sei querido, eu acredito em você. Me desculpe, é só que eu fiquei confusa. Amo vocês dois da mesma forma, nunca houve diferença”, afirmei com fervor.
“Eu sei, mãe. Não se preocupe. Agora esquece essa história, tá bom?”, ele propôs subitamente mais calmo.
Passei uma mão pelo rosto dele e o olhei com carinho. “Tudo bem, meu amor. Tudo bem. Agora eu vou me trocar. Tenho que ir até a cozinha verificar o cardápio para o almoço”.
“Certo”, ele retirou com cuidado minha mão de seu rosto e a beijou. Lançou um sorriso torto sedutor e saiu do quarto.
Eu me sentei diante da penteadeira e encarei meu reflexo no espelho.
Há muitas pontas soltas nessa história. Muitas coisas que não fazem sentido, que não se encaixam. Parte de mim quer acreditar nos fatos contundentes, já a outra me manda ser cautelosa, porque nem tudo é o que parece ser.
Alguém está mentindo para mim. Eu só não sei quem. Ou talvez tenha medo de descobrir.



Prevejo todas tremendo de ódio...

Nos vemos na sexta! 
#ClimaDeDespedidaOn

Ai ai...

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